Um passeio nos Cânions

“Viajar é mudar a roupa da alma.”
Mário Quintana

Passamos muito tempo entre uma trip e outra, dando propriedade ao termo “zumbizando pela cidade”. Andar num ônibus lotado, seguir a mesma trilha até o trabalho, lidar com os mesmos valores e ouvir as mesmas histórias nos envelhece a alma, nos empobrece os pensamentos, nos entristece o sorriso. É quando surge a necessidade (veja bem, não só a vontade, que nos acompanha eternamente, mas a necessidade) de viajar, de respirar novos ares, de, como dizia o poeta, mudar a roupa da alma. E assim fizemos.

Saímos sem rumo definido, mas magneticamente atraídos para os cânions da região da Serra Geral, na cidade de Cambará do Sul. O famoso Cânion do Itaimbezinho não me atraía pela sua popularidade, mas a selvageria do parque da Fortaleza me encantava, mesmo com um longo trecho de estrada de chão (ou melhor, de pedra), a falta de estrutura, e a distância. Mas, afinal, queríamos aventura, não um passeio no parque. Então, após uma noite de pizza, heineken e exorcismo infantil, acordamos com boa música, chimarrão e um dia de sol raiando. Calça jeans e chinelo, e pé na estrada. Fomos seguindo nosso caminho despretensiosamente pela estrada até Taquara, curtindo um som enquanto a brisa da estrada renovava nossa alma. Se a viagem não for boa, como aproveitar o destino?

Filosofamos, como sempre, silenciamos como nunca e seguimos
até Taquara, onde fizemos o retorno para subir a serra. Relembramos uma viagem passada e sugerimos uma parada num café em Igrejinha, não pela qualidade, mas pelo valor simbólico da visita. Ao entrarmos na cidade, descobrimos que nossa padaria estava fechada. Então, perguntamos a um transeunte sobre uma alternativa, e fomos informados que as padarias para café da manhã abriam só a tarde nos domingos. Bueno, decidimos seguir viagem e encontrar algum lugar no caminho para o desjejum, afinal o que poderia ser melhor que conhecer uma nova padaria?

10583293_1485923524999921_848296480_nSeguimos meio desnorteados, talvez guiados por Jah a essa altura, e nos desencontros da vida [e da estrada (e de nossos neurônios)], acabamos novamente em Taquara. Éramos só risadas, até que encontramos uma padaria e nossa alimentação estava garantida. Desci descalço, peguei um picolé e pedi um sanduíche. Ela gostou da idéia e pediu um igual, e foi até o freezer para pegar um suco Kapo de morango. E qual não foi minha surpresa, quando ela começou a banhar seus seios com suco de morango artificial! Creio que fomos mal interpretados naquela manhã de domingo, com gargalhadas acima do normal para aquele horário, para aquele dia, e para aquele local. Mas foda-se, não há momento certo para a felicidade, e éramos puramente alegria! Talvez tenhamos contagiado alguns corações de pedra, ou algumas senhoras de botóx, com nossa juventude inconsequente num domingo demanhã.

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O calor estava ficando forte, então voltamos a subir a serra. O ar já estava ficando mais gelado, a paisagem se erguia dos vales que acompanhavam a estrada, e as estações de rádio já não sintonizavam mais na nossa frequência cotidiana, então fomos embalados por novos antigos ritmos da música brasileira e internacional, enquanto serpenteávamos as encostas dos morros. E assim foi nosso caminho, nossa paisagem, nossa vibe, onde o tempo já não encontrava a realidade e as vibrações positivas entravam pelas janelas do carro. Aliás, eu concordo que o conforto é cada vez mais essencial para um bem-viver, mas viajar de janelas abertas jamais será substituído por qualquer ar-condicionado de duas ou três ou quatro regiões, seja qual for a temperatura. O importante é manter o contato com a paisagem, não se encubar dentro de uma cápsula de metal e vidro, respirando por aparelhos, se isolando do caminho. Ah, um dia eu vou viajar com um conversível!

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Assim que entramos em São José dos Ausentes, a Tai teve uma incrível certeza de que aquilo que víamos era uma placa (e de fato era), sendo guiados até a saída da cidade, onde encontraríamos a estrada e seguiríamos até nosso destino magnético. A paisagem mudara, os morros e serras davam lugares a planícies e colinas cobertas por uma vegetação rasteira muito verde, nos colocando no cenário dos episódios dos Teletubbies (se não conhece, joga no Google pra saber), onde o sol tinha carinha de bebê, olhávamos ansiosamente para as plantações de vacas esperando surgir pulando de qualquer colina um ursinho vermelho ou verde, repetindo incessantemente um bom dia para nós, com uma televisão na barriga. Já estávamos embriagados da experiência de uma viagem, nossa atmosfera era outra, já estávamos numa vibração muito mais tranquila e despreocupada, vivendo tão intensamente a única realidade, o presente que nós haviamos buscado, e era exatamente isso que precisávamos. As longas horas andando devagar por estradas intermináveis e ventos fortes, entre colinas e mais colinas, já nos tinha tirado daquela que era nossa realidade diária de preocupações e planos. Pra que planejar, se a melhor parte era exatamente o que estávamos fazendo?

Chegamos então à Cambará do Sul, onde paramos para almoçar num galpão alucinante, tradicionalíssimo, com cachaças de vários sabores (inclusive bergamota e alho poró), lembranças da cidade e comida campeira. A varanda estava vazia, então nos sentamos lá e comemos tranquilamente. O valor era alto, mas nada se comparava a comer no único restaurante aberto daquela cidade, onde motoqueiros passavam em frente ao ponto turístico acelerando suas motocas com as cocotas na garupa, e seguiam sua viagem pela cidade, então pagamos sem pestanejar, e fomos convidados a voltar sempre ao local. Bom, claro que recusamos o convite, afinal nossa vida não se baseia na mesmice, e sim em conhecer novos lugares.

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A Tai seguiu dirigindo o carro até o início da estrada de chão, onde voltei ao volante e começamos a trilhar a estrada de terra e pedras lentamente, em direção aos cânions. O visual era incrível, campos avermelhados à esquerda e amarelados à direita, capins guiados pelos ventos fortes dançavam sobre as colinas, e cada parafuso do carro ia lentamente se desligando das partes da lataria, como num desenho animado. Cumprimentamos o guarda da entrada do parque, e seguimos o longo trajeto até o estacionamento dos cânions. Passamos por placas que nos indicavam trilhas para a Cachoeira do Tigre Preto e para a Pedra do Segredo.

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Ao chegar no estacionamento, avistamos um graxaim, parecido com uma raposa, aliás mais parecido com um cachorro vira-latas, e conseguimos registrar a figura.

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Então, seguimos pelas terras pretas do topo do morro até a beirada do cânion. Uau! É realmente impressionante o visual, mas o melhor é a sensação de adrenalina que toma conta de cada parte do corpo quando se chega no limite horizontal das pedras, então o vale infinito se extende até um rio minúsculo entre os precipícios. A noção de distância não existe, somente uma perplexidade em relação à imponência da natureza, a nossa fragilidade fica exposta aos ventos implacáveis, que cessam a qualquer hora, e retornam quando você chega à beira do precipício, só para te assustar. Os paredões verticais são imensos, e a nossa ignorância como seres humanos não se compara à grandiosidade e majestosa formação da natureza. Fomos andando pelas bordas, sentamos nas pedras, tiramos fotos e nos divertimos bastante. Aquilo estava fazendo parte da nossa trip, jamais temos como razão de uma viagem o destino, mas aquele cenário era incomparável a tudo o que eu já vi na vida.

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Voltamos extasiados, pegamos o carro e seguimos o caminho em direção daqueles outros dois destinos que poderiam ser legais. Seguimos a trilha breve até a Cachoeira do Tigre Preto, e encontramos uma represa que terminava numa queda de uns 10 ou 15 metros de altura. Era bonito de ver de cima, e a energia da água sempre renova a vibe, mas preferimos seguir o embalo pela trilha que levava à Pedra do Segredo. No meio da trilha, avistei uma rota que ia em direção ao precipício, afastados uns 100 metros da represa. Corri na direção da cerca que impedia a proximidade da beirada, me joguei no chão e rolei por baixo dos arames farpados, então levantei e corri até a beira para presenciar o momento mais sublime daquele dia. Gritei para a Tai vir, mas ela já estava no chão rolando por baixo do mesmo arame, então pude compartilhar com ela aquele momento mágico. A queda d’água de 15 metros era só o início de uma cachoeira imensa, um volume d’água que despencava de, não sei bem, mas uns 300 metros de altura, em alguns níveis de pedras, onde a água que virava um véu de fumaça se chocava com as rochas escuras, seguindo seu curso até o fundo do vale, formando o rio que segue por entre os cânions. Ficamos em êxtase por alguns instantes, sem palavras, impressionados e encantados com a exuberância daquela beleza natural. Cada estrada que pegamos, cada caminho que seguimos, cada trilha que passamos, valeu a pena para ter esta experiência incrível. Sem dúvida nenhuma, o ponto alto da trip.

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Seguimos a trilha para a pedra do segredo, e minha esperança era grande, de acordo com um relato que vi num guia de turismo. Abro esse trecho para dar uma dica muito importante para viajantes aventureiros. Jamais, em hipótese alguma, confiem suas expectativas baseadas em guias turísticos, ou relatos como este que vos faço. Se queres uma experiência verdadeira, vá, conheça, desbrave, pegue a trilha errada e siga pela outra estrada, faça o que for necessário, para garantir a SUA experiência. Voltando para nossa trilha, seguimos mais alguns minutos passando por algumas bordas do cânion, até que chegamos no final da trilha e descobrimos o segredo da pedra. Me obrigo a ser honesto com vocês. Minha expectativa era de uma enorme rocha, realmente grande, que se equilibrava sobre uma fina camada de pedra, assim como narrava o guia. A verdade seja dita, o segredo é a expectativa. A pedra não passa de 5 metros, e fica a uns 100 metros do ponto final, minimizando sua importância, ainda mais diante de cânions com 700 metros de altura. Mas quem gosta, se diverte.

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Fizemos a trilha de volta tranquilamente, até chegarmos na represa, onde tirei a camisa, tomei um banho gelado, e me escondi sob uma pedra na queda inicial, meditando sobre o dia, sobre as experiências vividas, sobre a ascencão da minha energia, o prazer de estar ali, de ter feito as escolhas certas, enquando um véu d’água corria a um metro de distância de mim. Fiquei ali, repondo minhas energias, renovado pelas águas geladas do rio e pelos momentos vividos ali. A Tai ficou sobre as pedras, em seu mundo paralelo, sabe-se lá o que passava pela cabeça dela, mas a felicidade, sem dúvida, era um sentimento que compartilhávamos, e a sensação de realização fluía naturalmente entre nós.

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Quando voltamos para o carro, um casal de turistas perguntou, de dentro do seu veículo, quantos minutos eram de trilha até a cachoeira. Alguém os indicou erroneamente (lembra do meu trecho sobre dicas pessoais?) que o tempo era de 15 minutos, quando na verdade não davam 5 (lembra do meu trecho sobre dicas pessoais?), e o casal decidiu que era muito tempo, que já estávam cansados e aceleraram seu carro sobre as pedras da estrada. Isso nos deixou perplexo, mas serviu para aprendermos que cada um tem suas vontades, e que as 3 ou 4 horas de volta para casa não significavam absolutamente nada para eles, mas aqueles “15 minutos” de caminhada eram demais para seu dia, ao contrário de nós, guiados pelo não-tempo, pela dimensão intengível do presente único, pelo prazer de viver o máximo que nos era permitido.

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Chegamos em Cambará do Sul, passamos por Tainhas e São José dos Ausentes, reconfirmamos a existência da placa, paramos para um chimarrão no meio da estrada e mudamos a nossa rota para Canela e Gramado, para mudar a atmosfera. Passamos brevemente pela terra dos contos de fadas e dos pedágios, onde se paga para entrar e para sair, e seguimos de alma lavada em direção ao Vale dos Sinos, e depois para Porto Alegre. Sim, foi só um dia. Sim, foi só mais uma viagem. Sim, foi só um roteiro conhecido. Mas para nós, foi muito mais do que um simples passeio de domingo. Foi um dia de risadas, de experiências, de êxtase e respeito à natureza, de renovação da alma e, principalmente, um dia a mais de presente. Foi o dia que vivemos intensamente, que ouvimos as melhores músicas e passamos pelas melhores paisagens, porque, na verdade, estávamos na melhor companhia. E dias assim nos fazem sentir saudade da estrada, das risadas, dos vacilos, dos jargões, dos silêncios, de todas as características que fazem uma trip ser inesquecível. Posso dizer que, de fato, como falava o poeta, “viajar é mudar a roupa da alma.”MT

ps.: Falhei em não filmar, mas um dia irei novamente e coloco o vídeo aqui =)